Aula de História em 2040

Rafael Vendetta

Ninguém mais reclamava. Passamos a aceitar. Por falta de caixões, os corpos eram deixados em carrinhos de supermercado ou acondicionados em lonas, que eram largadas nas esquinas das ruas principais. Passamos a usar máscaras perfumadas, isso evitava o odor da morte.

A nova variante, batizada de P-64 era mais contagiosa e matava muito mais devagar. Os hospitais seguiam lotados, mas a morte, lenta e com um ritmo mecânico, fazia com que por vezes, ninguém procurasse mais o hospital.

Ao cruzar o Largo da Carioca, vejo numa banca, o jornal anunciar que o boom imobiliário de balneário camboriú faria bem para a economia. Depois do segundo mandato de Carlos Bolsonaro – aprovado depois da PEC-AI-05, a aposta da economia eram a construção de super-bolhas anti-covid, onde milionários e endinheirados moravam protegidos e com acessos às vacinas de laboratórios construídos nos condomínios.

O SUS tinha sido privatizado no primeiro mandato de Eduardo. Depois do segundo mandato do “mito” – assim era chamado Bolsonaro, uma insurreição de direita tomou o país. Um exército neopentecostal tomou às ruas com o apoio de grande parte das forças armadas. A constituição fora modificada e um triunvirato foi formado. Bolsonaro pai, um filho (escolhido a cada 2 anos) e um general das armas.

O povo estava esperançoso. Carlos começou seu segundo mandato prometendo restaurar alguns privilégios humanos (a palavra direitos humanos foi proibida no segundo mandato de Eduardo Bolsonaro). Prometeu na eleição disputada (entre Carlos e Eduardo), comutar a pena de morte por fuzilamento aos opositores políticos (todos clandestinos) para prisão perpétua. Uma grande frente ampla foi formada para apoiar a eleição de Carlos e tentar restaurar alguns dos privilégios humanos.

Entrei no prédio girando o pulso e mostrando a bio-pulseira de plástico biodegradável ao policial da Universal do Reino de Deus – sim, eles tinham poder de polícia nas dependências das suas igrejas, escolas e empresas. O scanner atestou: estava limpo ideologicamente, entrada liberada.

Sentei no meu curral. Cheguei a tempo, apesar do BRT ter parado por 10 minutos, para que os sapadores desativassem uma mina, colocada na primeira guerra civil pós-covid. Bispo Soares benzeu a água ungida e começamos todos a rezar. Depois do amém, começamos a trabalhar. Soares passou suavemente no meu curral e disse:

– Coríntio, essa sua gravata bege está com um tom meio avermelhado, você é comunista rapaz?

Gelei, mas me tranquilizei quando Soares deu três tapinhas na minhas costas. Da próxima vez, gravatas azuis, pensei.

– Vamos lá pessoal, vamos começar, gritou Soares. Na paz de deus irmão, gritou uma colega do fundo da sala.

Começamos. Câmera ligada. Transmitindo. Conectado. Iniciei a realidade aumentada. Aula de História. 10 alunos on-line.

Hoje vamos falar de Abraão meus jovens e sua ida a Canaã, mas antes gostaria que vocês confirmassem o dízimo desta semana. Nove estudantes enviaram o pix, apenas Ezequiel, soturno, levantou as mãos e balançou.

– O que houve Ezequiel?

– Obreiro, ele disse, meu pai morreu semana passada de Tifo e sua conta do vestes-bank foi bloqueada. O supervisor passara ao meu lado naquele momento e me disse rispidamente: – Desconecta ele Coríntio. Tentei argumentar e disse que ele perderia a matéria. O supervisor foi enfático, nada de exceções.

– Vou ter de te desconectar Ezequiel, tudo bem? Tente resolver isso e volte na semana que vem.

Apertei o botão com força, engoli o choro. Terminei a aula. Tinha cinco minutos para ir no banheiro. Ao atravessar o corredor, vi todos os supervisores parados, em frente ao telão da sala da supervisão. Algo aconteceu, pensei. Eles riam. Chegaram a se abraçar. Estavam eufóricos. Caminhei devagar para ver o que ocorria.

Um deles saiu da sala e me olhou. – Você viu Coríntios? Acabaram de capturar o Felipe Neto! Esse velho desgraçado vai ser executado amanhã!

Brasil acima de todos!, gritou com as mãos pra cima. Corri para o banheiro. Fechei a porta da cabine e comecei a me sentir mal. Vomitei. Voltei para a sala cambaleando. Um rapaz viu meu estado e me perguntou se eu estava mal. Disse que sim. Uma senhora com uma tornozeleira digital me entregou duas cartelas de remédio nas mãos. Deve ser covid menino, toma logo essa hidroxicloroquina. Volta a trabalhar se não tu tá encrencado.

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